quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O TIO JOAO - CONTO PREMIADO NO PRIMEIRO LUGAR

A VISITA AO TIO JOÃO
A única riqueza que lhe restava era a vida. Com setenta e poucos anos parecia ter mais de oitenta. Todo curvo e cheio de reumatismo. Os amigos foram se escasseando, os mais novos ocupados com a vida e os mais velhos iam aos poucos para a verdadeira morada. Os vizinhos iam se trocando e os novos inquilinos vieram vacinados e imunes do conhecido e tradicionais “olá”, “bom dia”, “boa tarde” ou “até amanha, se Deus quiser”.  As famílias? Também foram vacinados, estamos no mundo das vacinas e das imunidades.
Ele comprou um apartamento onde morava com a mulher e dois filhos, em Carnaxide, não muito longe de Lisboa. Os filhos com a febre da emigração e a falta de trabalho digno emigraram. Foram para a França.
Certo dia a mulher adoeceu e ele fez tudo para que ela se curasse, mas o câncer foi mais forte. Dois anos depois e com muita dor e sofrimento ela recebeu a visita do Senhor e teve a Paz da Alma. Foi um alívio, para ela que tanto sofria e para ele que não sofria menos vendo sua amada a sofrer.
A partir daquele dia o céu apareceu mais cinzento, o sorriso menos alegre e o andar mais cansado. Recolheu-se a casa e só saia para ir a mercearia. Falava com o dono da mercearia, quem lhe dava algumas vezes fiado e ele pagavam quando recebia a pensão. Depois de algum tempo só o merceeiro sabia que ele era o Tio João. O Tio João era cada vez mais uma sombra ambulante.
Certa noite, depois de passar por mercearia e saldar todas as suas dívidas foi para o seu apartamento descansar. Era o que fazia diariamente. Descansava enquanto a cidade continuava a viver acordada dia e noite. Naquele dia não foi a excepção. Lá fora continuava a vida, carros a passarem, mulheres e homens a falarem dos seus problemas, jovens a namorarem, prostitutas e prostitutos a prostituírem… Enfim o normal do dia-a-dia.
Ele sentiu um leve bater na janela, estava no quinto andar, ninguém bateria a janela de um quinto andar, mas ele ouviu e levantou e foi ver. Perguntou se hesitar:
-Quem é?
-Sou eu, o teu Amigo, a tua Família, sou eu o Jesus Cristo, vim ti buscar.
-Um momento que vou abrir a Janela…
-Não é necessário, só preciso de ti… O teu corpo pode ficar, sai e vem que não temos tempo a perder.
O Tio João deixou de ir a mercearia, depois de duas semanas o merceeiro participou a Policia. Foi enviado um policia que foi e encontrou a porta fechada. Não havia arrombamento, estava tudo normal e nem havia o cheiro fétido da morte… Talvez já tivesse passado ou talvez, como era no mês de Dezembro e com o frio…. O cheiro não chegava a porta. Com tudo normal, tudo deve ficar normal.
Dez anos depois o serviço das Finanças recordou das dívidas do Tio João e leiloou o apartamento para pagar as dívidas do mesmo apartamento e ordenou que a porta fosse arrombada. O novo inquilino tinha que tomar a posse da sua propriedade…
O Tio João dormia eternamente na cama a espera que fosse enviado para sua última morada. Estava tão sem nada que podia ser usado para estudo do esqueleto humano.


Praia, 29 de Outubro de 2014
João Pereira Correia Furtado
http://Joaopcfurtado@tacv.aero