segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A SONAMBULA DANÇARINA




A SONAMBULA DANÇARINA
Há meses que se sentia cansada, pouco tinha que fazer. Durante o dia dava pequenos passeios no jardim, quando lhe apetecia, bordava ou tocavam no histórico piano de cauda centenário da família. Uma das poucas mobílias trazidas de Portugal para a pequena Ilha da África por exigência da mãe.
Os ditos passeios deviam ser curtos e seguidos por dois ou mais serviçais que tinham como missão a proteção dela de todos os males inclusive dos mosquitos anófeles que tantos males causavam. Era preferido serem eles os serviçais picados por milhares de mosquitos que ela por uma única picada.
Ela sabia, ouvia que nas sanzalas, há poucos metros do colonial e pomposo edifício onde residia, diariamente, para passarem o monótono tempo noturno haviam danças diversas africanas trazidas do continente pelos serviçais, mas nunca, pelo menos assim julgava, tinha visto ou presenciado e muito menos participado.
De onde vinha tanta canseira? Se ela era uma das primeiras a deitar e das últimas a levantar? Se ela tomava o seu pequeno almoço no quarto e nunca via o sol, senão depois de se iniciar o declínio para a noite...
O mistério tornou-se mais incompreensível quando uma das paredes do quarto apareceu tal uma tela, onde os serviçais, negros e seminus e com os instrumentos rudimentares tocavam e as mulheres quase todas com minúsculas saias e mais nada vestidas dançavam a volta de uma linda e alva rapariga, vestida de azul-celeste e portadora de um xale cor de ouro nas mãos. Se não era ela, era uma perfeita clonagem fora do tempo...
Sem saber como a parede milagrosamente transformou-se na bela e artística tela, foi tomar o pequeno almoço na mesa com os pais, coisa que não fazia há anos e teve o cuidado de trancar a porta e levar com ela a chave. Quando regressou ao quarto, deu ela mesma um jeito no quarto e não deixou que nenhum serviçal entrasse.
Tentou por todos os meios guardar o segredo, mas a mudança tão repentina dos hábitos diários levantou suspeita e o pai, prudentemente, destacou dois serviçais de sua inteira confiança para segui-la... Segui-la para onde? Ela não ia a lado nenhum.
Onze  horas da noite. O silêncio na mansão até arrepiava,  nem um zumbido do mosquito, nada, tudo era apenas o silêncio... Um som do ranger da porta que se abria, era ela que saia e ia, com os olhos fechados. Parecia um zumbi, mas não tropeçava e nem caia. Levava um vestido azul-celeste e nos ombros um xale cor de ouro ou mel. Seguiam na os dois serviçais, ela não podia prever que era seguida. O destino era a sanzala onde o barulho era ensurdecedor e ela mal chegou tornou-se centro de tudo e ao lado tinha um jovem negro adornado de maneira diferente de todos... Além do adorno ele era altivo e com portes reais.
Dançaram ele e ela por mais de duas horas, ele pegou-a nas mãos e perderam na noite. Os dois serviçais seguiram-nos até ela regressar de braços dados com ele e os dois entraram no quarto dela. Ele pegou no pincel que trazia no bolso e deu mais uns retoques. Desenhou-se envolto ao xale que ela suportava.  Ela dormia num sono profundo.
Ela acordou para ir tomar o café, reparou no desenho e ela gostou não se lembrava de nada, mas gostou do desenho e do jovem... Abriu a porta, deparou com os dois serviçais, estavam imóveis no chão. Chamou o pai e este não conseguiu ver nenhum vestígio de crime, mandou enterrar os serviçais...
Ninguém jamais soube que ela era uma sonambula e ela jamais soube por que havia tanto mistério a sua volta.          


João Pereira Correia Furtado
Praia, 19 de Outubro de 2015