segunda-feira, 4 de julho de 2011

UMA SEMANA TRISTE



Querida Amiga Arlete

Esta semana não podia começar pior. O domingo ainda iniciava, era quase cinco horas da manha quando recebi a triste e impensável noticia.
Amiga, o telefone tocou e atendi, é normal ser chamado à qualquer hora do dia. Tenho amigos e familiares espalhados pelo mundo. As vezes sinto um friozinho na barriga, tal como senti naquele momento, mas tento pensar sempre que no outro lado da linha está alguém a anunciar que ganhei na lotaria. Que a noticia à receber será a melhor do mundo. Mas não é o que aconteceu. Era a pior noticia que poderia desejar. O meu afilhado Belmiro Batalha Lopes, pai da minha também afilhada, Belangela, falecera naquela noite. No telefone estava a cunhada dele e minha prima Elsa Furtado.
Ouvi e calei-me, fiquei mudo, estático e senti o chão o me faltar por baixo dos pés. A única frase que conseguia repetir no momento era “Belmiro morreu”. Nem chorar consegui. A minha mulher que estava ao meu lado começou a chorar e a gritar. Eu fiquei mudo e com uma enorme vontade de chorar, gritar, e rebelar contra o fatal destino.
Ainda consegui e com muito gosto perguntar:
-Como…Que aconteceu?
Ela falou-se de ataque cardíaco fulminante. Não resistiu e morreu de imediato. Morte súbita. A minha cabeça parecia que ia arrebentar de tanta dor. Não podia conformar-me com tamanha desgraça. Ele era jovem e com a vida pela frente…
Sabes… Amiga Arlete, conheci o Belmiro há 22 anos. Ele namorava uma estagiária no serviço da minha mulher e que muito provavelmente seria minha parente, o nome dela é Angela Furtado. Tu não sabes… Cá nesta terra o ter apelido “Furtado” é pertencer a mesma árvore genealógica, não se pode escapar desta sina. O meu pai sempre afirmava aos quatro ventos “FURTADO é uma única família”. Ficamos amigos tão íntimos que… Surgiu-me uma viagem de trabalho e não queria deixar a minha mulher e os filhos em casa sem um acompanhante é que…Querida Arlete, a minha mulher estava grávida, com quase nove meses, ia ter filho na minha ausência. Pensamos, e, chegamos a conclusão que a Angela Furtado era a pessoa indicada. Ela aceitou e a minha mulher teve a companhia que queria e que desejava. Foi a Angela Furtado que a levou para o hospital e que a deu todo o apoio, que eu ausente, ela precisou ao dar a luz a minha filha mais nova.




Querida Arlete, pediste-me para que eu seja mais sucinto nas minhas longas cartas para ti… Mas como escrever sobre a morte do meu amigo sem lembrar que a nossa amizade foi crescendo sempre e sempre. A Angela Furtado e o Belmiro Batalha Lopes casaram-se poucos dias depois. Mal regressei e ainda a viver a alegria de ter mais uma bela adicionou a ela a alegria da afilhada anunciada. Eu e a minha mulher fomos padrinhos de casamento e, com a vinda da filha nove meses depois, passei com distinção no papel de compadre do casal. Passara a ser o padrinho da Belangela. Os anos passaram e inversamente proporcional a nossa amizade se tornou cada fez mais estreita. Tiveram mais duas filhas e elas também habituaram a me chamarem de padrinho, muito embora terem nascido em Portugal e eu continuar em Cabo Verde.

Sim, amiga Arlete, os meus afilhados foram residir em Portugal, mais precisamente em Lisboa a poucos metros das Portas do Benfica. Mas creio eu que o meu nome, alias padrinho, foi pronunciado com muita frequência, para que as outras duas meninas me tratarem como padrinho e eu tratar as três da mesma maneira… Usei e abusei da hospitalidade deles sempre que me desloquei a Lisboa. Afinal eram meus afilhados…

Em Lisboa tiveram que trabalhar e estudar. E o trabalho para emigrantes não é fácil… Para que estou eu cá a te dizer estas coisas, tu estás em Portugal. Deves saber melhor que eu o que é levantar as quatro horas de madrugada, no inverno frio para ir trabalhar nas “obras” e levar a marmita de comida fria, que nem sempre conseguem aquecer nos poucos minutos destinados para a refeição. Ter que estar durante o dia de pé num trabalho duro e regressar cansado a cair de morto… Tomar um banho a correr e mal comer alguma coisa para sair de novo com único rumo - estudar. Foi esta a vida dos meus afilhados.




Amiga Arlete, não é em vão o meu respeito por eles, mostraram ser pessoas infinitamente responsáveis e correram riscos calculáveis em tudo. Conseguiram transmitir um principio de vida as filhas que, primeiro com espanto e depois com admiração, nunca havia visto antes e penso ter sido casos raros. Eles não podiam pagar nem um infantário, nem uma empregada… Tinham ajuda dos familiares, principalmente da mãe do Belmiro, mais não obstante, ensinaram as duas meninas a cuidarem-se, a mais pequenina ainda não era nascida, vinham da escola, iam a cozinha e aqueciam o que havia para comer… Agradecendo ao Deus pelo pouco ou muito que havia e alimentados, ocupavam o tempo a estudar ou a divertirem vendo a televisão.
Não posso escrever-te, amiga Arlete, esta carta sem te dizer isto. Era uma sexta-feira e estávamos na quaresma. Estava de trânsito por Lisboa e me acomodei mais uma vez na casa dos meus afilhados. Inadvertidamente apanhei um frango assado ao passar perto de uma churrasqueira e levei. Em casa lamentei:
-Esqueci-me que hoje é sexta-feira, vamos ter que guardar o frango para amanha!
Sabes o que a mais nova das filhas dos meus afilhados me disse de imediato?
Não imaginas…
-Não padrinho, vamos comer! O frango é mais barato que o peixe. O objectivo da abstinência é poupar para dar aos menos favorecidos… Comendo frango estamos a fazer precisamente isto.

Ela tinha na altura pouca mais de seis anos.

Amiga Arlete, segunda-feira feira não foi melhor. O meu amigo morreu na Ilha do Maio e foi transportado por barco para a lha de Santiago, onde resido. O corpo dele foi submetido a autópsia e ficou na câmara ardente em Santa Catarina, Assomada. O enterro foi anunciado para terça-feira. Pedi um dia de despensa no trabalho, estou a trabalhar há 26 anos na mesma empresa e era a primeira vez que estava a pedir um dia de despensa e fui negado. Segundo o último regulamento, não me dou muito bem com os regulamentos, só devemos ir aos enterros de familiares do primeiro grau, o melhor amigo, compadre e afilhado não entra neste círculo. Fiquei estupefacto com esta revelação. Me parecia, pelo menos noto uma certa liberdade nos meus colegas, que devíamos ter a liberdade de ser um pouco mais solidário. Resolvi que devia, pela primeira vez, faltar ao trabalho…”Amanha faltarei o trabalho…” Eu estava a pensar, quando o chefe em substituição do meu chefe directo, agastado com a minha incompreensão afirmava:
-Furtado, já não existe despensas, falta e justifica ou tens de pedir um dia de férias, se ainda gozaste apenas uma parcela. Sabes que agora só se pode gozar as férias um três parcelas.
Amiga Arlete, os regulamentos são cegos, surdos e mudos, só que… Na minha terra não são assim tão cegos, surdos e mudos para todos… A mesma flexibilidade que tenho notado a minha volta não é a mesma que notei para comigo…

No fim do dia, já preparado para faltar no dia seguinte, tive a noticia que afinal o enterro seria na quinta-feira. Iam esperar a chegada da Ângela Furtado e das filhas. Elas permaneceram em Lisboa. Na verdade estavam para reuniram na próxima semana, ou seja na primeira de Julho deste ano. A morte não os deixou.

O Belmiro veio e conseguiu ganhar concurso de Procurador da República e colocado na Comarca do Ilha do Maio, onde ficou pouco mais de três meses. Foi cheio de esperanças e voltou como te contei, amiga Arlete, falecido… Como se diz cá na terra, foi porque quis e caminhando com seus próprios pés e regressou carregado.

Por fim na quarta-feira a noite pode ir ver a família e chorar um pouco com eles. Aproveitei uma boleia de um amigo comum, o António Andrade, sabes amiga Arlete, a família do Belmiro reside quase no outro extremo da Ilha. Entretanto só pude ver a mãe dele. A esposa e as três filhas chegariam no mesmo dia, mas as altas horas da noite. O corpo estava em conservação no Hospital Regional do Norte de Santiago, onde não tínhamos acesso.




Tive algo de bom também nesta quarta-feira desta semana de tristeza. Não é que o meu chefe directo, que estava fora em missão de serviço, chega? E autoriza-me a despensa para o funeral? Pelo menos não teria, depois de 26 anos de trabalho, a minha primeira falta injustificada…
Outra boa notícia, quem nem pude me alegrar com ela, é sobre o nosso “OLHARES DE SAUDADE”, a Fátima Bettencourt vai fazer “prefácio” e acha que é um bom livro, pode-se melhorar em alguns aspectos, amiga Arlete, mas está aceitável. Uma critica desta saindo da boca de Fátima Bettencourt deixa qualquer um muito satisfeito. Eu não fugiria a regra se não estivesse numa semana daquelas!

O enterro foi dramático, principalmente porque me encontrei com as minhas afilhadas, a esposa Ângela Furtado Lopes e as três filhas. O Belmiro estava, como sabes amiga Arlete, no caixão, que foi coberto com a Bandeira Nacional e vários ramos e coroas de flor. Ao som da música clássica e um discurso do representante do Ministério da Justiça para os familiares o corpo do meu amigo e afilhado e compadre foi deixado na sua última morada.

Eu, amiga Arlete, sentia dois fios de água a me correr rosto abaixo enquanto contemplava as duas filhas mais velhas desesperadas e sofrerem e a mais nova, coitada, com cerca de cinco anos, a brincar com o primo de quase a mesma idade!


Ontem foi a missa do sétimo dia, a família mais calma, é a lei da vida, caminham para a normalidade. Fomos a missa, eu e a minha mulher. Choramos um pouco e rezamos pela alma do nosso grande amigo, um dos poucos que temos!

Enquanto chorávamos, passava na estrada um cortejo em festa, batuque, gritos de alegria e buzinões, num descapotável, estavam um casal muito jovem, a rapariga vestida de branco e o rapaz de fato. Nós não sabíamos quem eram, mas todos tivemos uns minutos de alegria pela vida que se renovava naquele casamento!


João Furtado

Praia, 03 de Julho de 2011