sexta-feira, 23 de março de 2012

O ALCIDES

Ainda não escrevi sobre o meu Liceu nem sobre o Alcides. Passei por lá há pouco tempo e veio-me a memória o Servente Alcides... Humilde e sempre disposto a ajudar...
Um dia destes vou escrever para ti, Alcides… Ou sobre ti…!
O Vinte e Cinco de Abril estava perto. Eu não sabia de nada e nem tu sabias, creio eu. Eras um dos poucos Cabo-verdianos a trabalhar fora das roças. Tu não estavas a apanhar cacau ou a quebrar cocos.
Pequeno, de farda castanha, rosto a contar a idade, sei que já não eram poucas… Sabias impor sem usar a ditadura que a tua farda de Servente imponha sobre a minha de criança e de aluno. Não era bem o Liceu, havia passado a se chamar Escola Preparatória… Recebia os crianças vidas da Primária e que, após dois anos, encaminhavam para o Liceu… Deixávamos sempre o coração ali, na Escola Preparatória na cidade de São Tomé, na altura, única em São Tomé e Príncipe…

Não será hoje, nem agora que escreverei sobre te Alcides. Mas há-de chegar aquele dia Alcides e escreverei para ti ou sobre ti…
Lembras daquele dia em que… Eu tive um ataque de epilepsia? Alcides, decerto que não te recordas. Os mortos não recordam de nada… Ou recordam? Pensando bem… Acho que sim! Não podes esquecer-te que do pouco que ganhavas… Tiraste e pagastes o táxi e me socorreste… Tiveste de pagar cinco lugares… Sabes, na tua terra, a terra que sonhaste voltar e nunca pudeste… Aqui não é como lá, Alcides, aqui o táxi não enche. Cada cliente paga o seu serviço. Não é como lá, onde o táxi funciona tal serviço colectivo. Aqui se tu tentares partilhar o táxi e outro cliente o abandona e se sente humilhado… Enfim… A tua terra mudou-se muito e se tornou na terra que te disse.
Tu me contaste depois que estive internado três dias, eu, quando acordei, o meu primeiro impulso foi ir fazer a prova de matemática. Era a prova que eu ia fazer naquele sábado, meses antes do Vinte e Cinco de Abril. Mas quando a Enfermeira informou-se que eu estava internado, percebi tudo. Não por ter lembrado, mas porque não era a primeira vez… Foi a última pelo menos até hoje… Nunca mais tive ataque destes… Eram uma seca. Todos começavam da mesma maneira. Via de repente que tudo à minha volta era minúsculos peixes… Conheces “peixinhos” sim era isto, tudo parecia peixinhos a minha frente e de repente eu entrava no buraco negro… Nada, nada, nada… E a imagem seguinte era o branco dos lençóis e da farda dos médicos e enfermeiros…
Alcides tu tinhas entre um metro e cinquenta e oito à um metro e sessenta centímetros, curioso, tinhas quase a minha actual altura, na altura eras ligeiramente mais alto. Eras mestiço e tinhas olhos castanhos-claros. Os teus cabelos já estavam quase todos brancos e na parte frontal precisava-se de lupa para encontrarmos algum sinal deles. Não somos parentes, mas estou a ficar igualzinho a ti…
Lembras quando o Albertinho, coitado, era uma brincadeira estúpida que podia me custar alguns dissabores. Ele confiou na minha agilidade… Coisa que eu tinha pouca! Com uma minúscula navalha, à brincar, fez que me ia dar um golpe na barriga… Tal como ele imaginara eu afastei… Mas não tanto para sair completamente ileso… Lá foi a camisa, com um grande rasgão e uma arranhadura na barriga. Nada de mais… Entretanto não passou despercebida a minha corrida atrás dele com um sentimento de vingança… Mal o alcancei tu tomaste a conta da situação e nos levaste para a Directoria… Fui inocentado tal como eu estava, graças a ti que tudo viste… E que conhecias apenas duas palavras… Sim era sim… Não era não… Eras como poucos… Afirmaste que eu estava parado e colado ao poste que suportava o tecto da corredor como estive sempre em todos os intervalos… Que até admiravas como consegui-me desprender para correr a trás do Albertinho…
Recordo-me de ti com imensa saudade, Alcides, Recordo-me da última vez que te vi. O Vinte e Cinco de Abril já estava à porta, foi em Janeiro de 1974, tenho o dia bem fresco na minha memória. Eu ia visitar a Yaya, na Quinta Santo António… Sabes Alcides, a Yaya também é uma pessoa de quem um dia irei falar, ela e o Pedrinho… Tu estavas sentado na porta lateral da Escola Preparatória a cumprir um dos teus papéis, o de porteiro. Estavas sério e quase a dormir, ou… Parecia que estavas a meditar sobre qualquer coisa… Tenho quase a certeza… Vi-te e também reparei, por mais uma vez, a célebre frase em latim pintada na parede lateral do Edifício Principal da Escola Preparatória, a Filosófica frase atribuída a Decartes “Cogito ergo sum”…
Juro que um dia escreverei para ti ou de ti, assim como espero escrever sobre Yaya, Pedrinho e muitos outros heróis jamais lembrados… Mas será quando eu for conhecido e os meus escritos procurados e avidamente devorados… Não vou escrever para ficar a apodrecer numa gaveta qualquer lá do quarto… Quando for a hora, escreverei de ti ou sobre ti, juntarei uma fotografia tua que não tirei nem terei e publicarei em tua póstuma memória… Por enquanto vou rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria e desejar que estejas na Gloria na companhia de Pai, Filho e Espirito Santo… Amém!

Praia, 23 de Março de 2012
João Furtado