Pior que viver de uma agricultura de subsistência,
é vive-la numa ilha martirizada pela natureza, onde a chuva não poucas vezes “esquece”
da sua visita anual. Não poucas eram as crianças, já com dois e mais anos e que
nunca tinha sido molhadas pela natureza.
O José e o Antonio viviam numa ilha
assim, entre carestias e alguma benesse divina lá foram crescendo. Quantas
vezes a fome diária era esquecida com um pouco de “grogue” e a noite, sem onde
dormir, pois até o caminho de casa esqueciam, abraçados numa esquina passavam a
noite.
A terra era de esperança, anualmente,
quando as nuvens teimosamente juntavam sobre a ilha, umas vezes para anunciar a
aproximação da esperada chuva, outras vezes para desgraça dos agricultores, gastarem
até o último tostão numa sementeira “em pó” ¹, a espera da água enviada por
Deus. Vezes sem conta, dias depois a Ilha era visitada por prolongados ventos
do leste e as nuvens eram afastadas.
A pior é a noticia que chegada pouco
tempo depois. Os pescadores informavam que houve chuva e muita chuva, mas no
alto mar.
-Não conseguimos pescar nada, a chuva
e o temporal não nos deram o sossego necessário para uma pesca.
O pescar precisa de uma disposição e
nervos de aço, esperar tempo indeterminado até que o peixe caia no engodo e engula
uma isca e com ela o traiçoeiro anzol…
Mas não é da Ilha, nem das armadilhas
do mar que quero aqui perpetuar, mas sim do José e do António. Num dos dias em
que o António conseguiu acordar a tempo, o José continuava a dormir que nem uma
pedra, se a pedra tivesse a capacidade de roncar… O António até insistiu para o
acordar, mas desistiu.
Deixou-o a dormir e foi andando. Passou
pelo “lugar” de uma viúva de nome Belmira. A Belmira estava na sementeira,
embora a chuva ainda não tivesse caído nem uma única gota. Era a sementeira “em
pó”. E como estava com falta de trabalhadores, resolveu para ao António para
cavar a terra. Este estava fraco e com fome, mas fez de tripas coração e pegou
na enxada. Trabalhou a custo até ao fim do dia e conseguiu ganhar um dia de
trabalho.
Mal recebeu foi procurar o amigo,
onde o havia deixado a dormir, mas, não o encontrou. Perguntou por ele. Mas ninguém
sabia nada sobre o José.
-Ele passou por cá, eram dez horas –
Disse uma vendedeira – Ele queria “um dez” mas comigo é assim, “dinheiro na
mão, costa no chão”, sem dinheiro não há grogue.
Ele continuou a procurá-lo, perguntou
e perguntou, mas parecia que o José sumira. O António esqueceu-se de comer e de
beber. Esqueceu-se de tudo, menos do José.
A noite já ia longa, quando ele
chegou a uma das muitas praias que rodeavam a ilha. Cansado, com fome e a
tremer, por falta de álcool, habitualmente tinha no sangue. Viu um corpo
estendido na praia. Aproximou-se e deitou ao lado. Não conseguiu reconhecer
quem era…
No dia seguinte foram encontrados,
dois corpos abraçados e sem vida. No bolso de um deles estava o correspondente
a um dia de faina. Era o António e o outro… O outro era o José, dois amigos inseparáveis,
que num dia aziago, separaram por algumas horas na vida!
João Furtado
Praia, 09 de Setembro de 2014
¹ - Sementeira “em pó” – Semear antes de
iniciar a chuva, bem próximo da época chuvosa, porá aproveitar toda a gota de água.
₂ - “Um dez” – Um copo de grogue
(aguardente de cana).
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