sexta-feira, 3 de junho de 2011

O DIA DOS ENTERROS

Recebi com consternação a notícia. Convivemos com a morte desde que nascemos, mais jamais nos habituamos com ela. Principalmente se conhecemos a pessoa que morreu, como era o caso. A Didinha era minha amiga e prima afastada da minha mulher. Mas era prima e graças a Deus somos um povo muito ligados por laços parentescos. Não creio que exista outro povo que tenha uma família tão grande como a nossa.
A Didinha era minha prima, casei com prima dela.
Iria para sua última morada as quinze horas. Era esta a informação que chegara até mim. Não podia faltar a cerimónia. Teria que a acompanhar. Ela jamais me perdoaria.
A Didinha morava na Achada Trás e eu em Lém Ferreira. O Enterro teria que forçosamente passar por Lém Ferreira. Iria esperar na estrada, pelo cortejo. Por enquanto temos apenas um Cemitério na Cidade da Praia. Está constantemente a romper pelas costuras. Já foi várias vezes estendido. Os serviços camarários sabem que a Cidade esta a pedir outro Cemitério, mas ninguém tem coragem de mandar construir outro. Todos têm a certeza inabalável que seriam o primeiro cliente da nova casa. Se é verdade que a morte é certa, também é verdade que ninguém a deseja por esposa.
A Didinha era negra e bela. Somos um povo mestiço. A nossa cor adivinha sempre uma mistura. Mesmo nos mais negros adivinham-se sempre uma certa mestiçagem. Mas na Didinha era difícil ver nela mais que a beleza da pura raça negra, nem precisava pintar os lábios, pareciam pintados de verniz preto, de tão negro que era.
Nenhum olhar masculino era inocente quando o alvo era a Didinha. Ninguém resistia aquela beleza selvagem. E vê-la andar… Era dengosa e a sua curva saliente, formada por contraste de seu volumoso e arredondada coxa e fina cintura, cadenciava no movimento rítmico do esquerda, direita ao som do batuque inexistente… Não deixava nenhum ser humano de sexo masculino indiferente.
Não vou falar do rosto angelical dela. Se anjo negro existisse, os escultores inspirariam na Didinha para as esculturas, mas não existiram, hoje ela vai ser enterrada e muito provavelmente toda a beleza dela irá terminar debaixo de um palmo e meio de terra.

Ela tinha uma saúde de ferro. Era peixeira. Passava a vida a vender peixe. Ela vendia o peixe por quase todas as portas de Lêm Ferreira. A Didinha tomava o autocarro a porta da casa ia até ao cais, comprava peixe. Fazia resto de viagem a pé levando na cabeça um grande alguidar com água e peixe, no total o alguidar teria no mínimo 30 quilos ou mais. A água serve para que o peixe apresente sempre fresco aos olhos do comprador.
A Didinha vendia peixe e só regressava a casa a noite. Nunca almoçava. Embora tivesse oito filhos, ninguém a dava mais de 25 anos. A morte não só apanhou a Didinha desprevenida como nos apanhou a todos seus amigos, familiares e compradores do seu peixe. Ninguém esperava que ela morresse. A lamentação era geral.
Preparei-me para ir ao enterro. Procurei a roupa com cuidado, alias, a minha mulher teve o cuidado de me supervisionar. Não podia levar nada que tivesse um pingo de vermelho ou cores similares. Quis levar comigo um livro, para ler enquanto esperava pelo cortejo. A minha mulher achou que eu não devia levar. Não seria de praxe. Sem ela, a minha mulher, ver apanhei um livrinho de bolso e levei escondido.
Fui esperar na rotunda de Lém Ferreira. A minha mulher não foi, não se sentia bem. Ela estava exausta, ela tinha passado a noite acordada no nojo enquanto eu dormia. Cumprimentei algumas mulheres que encontrei lá. Provavelmente ia ao mesmo enterro e estavam também a espera do cortejo. Sentei sobre uma pedra e comecei a ler, enquanto esperava. As mulheres falavam entre si. Era normal.
Não sei quanto tempo esperei. Veio o cortejo ao passo do caracol. Entrei nele e fomos rumo ao Cemitério da Varzea. Ia acompanhar a bela e querida Didinha para sua última morada.
Entrei num grupo de religiosos. Estavam a rezar o terço a Virgem Mãe, a Didinha foi mãe, também foi pai, mas isto é outra história. A Didinha merecia ser comparada com a Virgem Mãe.
Íamos a pé, quase sempre vou a pé para os enterros. Uma das causas é porque não tenho nem carta de condução, nem carro. Outra razão é porque sempre vão muitas pessoas a pé, porque iria eu de carro? Continuamos a rezar as Ave-Marias, as Santa-Marias e os Pai-Nossos. Terminamos com uma longa Ladainha própria para cerimónias destas. Por fim o improvisado chefe da cerimónia pediu para a defunta…
-Rezemos uma Ave-Maria e Um Pai-Nosso para a alma do José, mais conhecido por Don, que Deus tenha piedade da sua alma.

Eu estava no enterro errado. Não era o enterro da Didinha, não rezei pela alma da Didinha, mas pela do Don.
Veio a minha memória um poema que fiz a anos sobre dois irmãos que o destino fez deles pequenos delinquentes. Será que era um deles que morreu? Pergunto ao vizinho de lado. Nestas coisas nada melhor que perguntar o vizinho de lado.
- O que é feito do irmão?
- Está na cadeia, – respondeu-me o vizinho da circunstância – nem o dispensaram para o enterro. Esta gente não tem coração.
Senti o meu corpo a estremecer desde a unha dos pés até os fios de cabelo. Fui um profeta. Previ a vida dos dois irmãos gémeos. Estou no enterro de um, por engano, enquanto o outro está na cadeia. Bem feito, que me mandou escrever isto? Era a vida privada deles:

Outra Metamorfose Comum e Rara
Duas crianças, dois inocentes
Gémeos e irmãos
Pequenos e insignificantes
Don e Don-Don
Duas crianças, dois inocentes
Gémeos e irmãos, duas crianças
Sem conduta a conduta
de Don e Don-Don
Pequenos e inocentes
E tal como todas crianças
A mãe os defendeu enquanto pode
E como mãe que era
Tudo que ganhavam
A mãe levavam
Don e Don-Don
Duas crianças, dois inocentes
Gémeos e irmãos, duas crianças!

Dois adolescentes, dois inocentes
Gémeos e irmãos
Pequenos e não tão inocentes
Não tão Don e Don-Don
Novo nome foram baptizados
Pimenta e Malagueta, terror da Praia e arredores
Dois adolescentes, dois inocentes
Gémeos e irmãos
Pequenos e não tão inocentes
Esfarrapados e espancados
Fruto da sociedade que foi cega
Fruto da sociedade que é juíza
Dois adolescentes, dois inocentes
Gémeos e irmãos
Pequenos e não tão inocentes
Detidos e soltos, soltos e detidos
Menores e sem tratado
Menores e sem trabalho
Menores e sem família
O pai na cadeia civil
E a mãe no tribunal
Dois adolescentes, dois inocentes
Gémeos e irmãos
Pequenos e não tão inocentes

Dois Adultos, dois culpados serão
Pimenta e Malagueta
Gémeos e irmãos
Juntos ou separados
Na campa ou na cadeia
No hospital ou no hospício
Dois Adultos, dois culpados serão
Pimenta e Malagueta
Gémeos e irmãos
Filhos da sociedade cega e imoral
Filhos da sociedade juíza e carrasca
Dois Adultos, dois culpados serão
Pimenta e Malagueta

Mas, agora revejo tudo, no poema tinha posto todos os cenários. Não fui profeta nenhum.
Segui até cemitério. Senti-me no dever moral de acompanhar o Don a sua última morada. Graça a Deus os enterros são todos iguais. No cemitério e na dor não existem diferenças. Os próximos choram e pedem para serem enterrados em solidariedade ao defunto. Os não tão próximos, choravam pelos seus mais próximos falecidos mais ou menos recentes.
Resolvi esperar no cemitério o cortejo da Didinha. Fui sentar e esperar. Veio uma senhora. Sentou ao meu lado. Ficamos sentados e calados por algum tempo. Ela não resistiu e disse:
-Coitado do Don, morreu na flor da idade.
-Sim, o irmão gémeo teve melhor sorte – respondi enquanto imaginava a morte do Don - está preso!
Na minha imaginação o Don havia sido morto. Ninguém me disse, mas isto era coisa da Polícia. Estavam fartos de o prender. Levavam ao Tribunal e saia livre. Não fora preso dentro da Lei. Tinha a história do flagrante delito. A historia do prazo de apresentação. Os detalhes da legalidade que eram sempre esquecidos pela Policia. Principalmente quando se tratava de pequenos larápios. É irritante ver esta gente a roubar ninharias diariamente. Apenas para suprir o dia a dia. Porque não fazem grandes roubos? Podiam reduzir a quantidade pela qualidade.
Tornava a fazer das suas. Ia ao tribunal e era preso, na cadeia sentia-se melhor que na rua. Tinha tudo que não tinha na rua, por exemplo a televisão. Saia e tornava a fazer as mesmas coisas. Sofria a mesma pena. Não havia dúvidas. Foi um polícia que o baleou…

A mulher suspendeu a minha imaginação:

- O Don não tem irmão gémeo nenhum. – Disse-me ela – o irmão que está preso é mais velho mais de dez anos. Este sim, o António é que devia morrer. Aldrabão. Ladrão. E brigão. Não há quem no bairro que não tem uma queixa dele. Muito diferente do José, o Don, bom rapaz. Pescador exemplar e bom pai de família. Morreu de paludismo.
A Natureza tem sua incompreensão. Porque iria morrer um coitado de paludismo numa terra que não chove. Que…
Ela não deixou-me continuar o meu raciocino:
-Perdeu no bote quando foi pescar, foi encontrado por um navio Grego e deixado em Dakar. Veio de Avião. Dias depois sentiu febre e tremura. Pensou que eram passageiras e não eram. Quando foi ao hospital já era tarde!

Não imaginei mais nada. Puxei do meu livro e comecei a ler, a espera da Didinha, ia me despedir dela para sempre…

Fim

João Furtado

Praia, 08 de Março de 2009